Pelas três badaladas da aurora, já é notório o monarca do pastel em Belo Horizonte. Um pastel de primorosa excelência, cerveja que se entrega ao frescor, e um atendimento cuja gentileza escasseia.
Nessas paragens do pão de queijo, a filosofia moderna desabrocha, damas e cavalheiros, tentando estabelecer flertes ou simplesmente engajando-se em diálogos no único recinto verdadeiramente desvelado às três da manhã, não apenas para devaneios etílicos, mas para a gestação de novas filosofias, mesmo que destituídas de primazia.
Três comparsas, Jorge, Carretel e Pedro, este último acompanhado de sua consorte Cesareia, compartilhavam de um néctar gélido quando Carretel, o mais embriagado e filosófico dentre todos, propôs uma indagação até então inimaginável.
“Quais são os fundamentos de uma coesão social?”
Em muitos colóquios acadêmicos, tal tema resultaria em dissensões ásperas, mas no Reino do Pastel, era uma filosofia consentida, com suas imperfeições e supérfluos. Jorge, pragmático, eficaz e financista da Faria Lima, prontamente elencou três pilares geradores de coesão em uma nação.
Igreja.
Governo.
Família.
Jorge não se contentou apenas com a enumeração, explicando com convicção por que estava investindo na debênture certa.
“A igreja nos proporciona a noção de fraternidade, a ideia de que somos amparados por um único Deus e que devemos nos tratar como irmãos.”
O humor perspicaz de Cesareia não deixou o momento passar, lembrando que em alguns momentos a igreja não se portou conforme tal preceito. Jorge concordou, mas acrescentou um ponto: “Toda entidade comete excessos em algum momento da história, mas isso não invalida o bem que ela promove.”
Todos aquiesceram, seja por carência de argumento ou concordância genuína. Contudo, Jorge prosseguiu.
“O Estado, teoricamente, deveria consolidar as normas aceitas pela sociedade e zelar por elas, mantendo sua legitimidade de acordo com a satisfação do povo.” Carretel, de pronto, fez uma piada relacionada à última observação de Cesareia, “o governo também, em alguns momentos, cometeu atos questionáveis, e ainda assim as pessoas persistem em depositar sua confiança futura nele.”
Todos compartilharam risos diante da analogia, revelando uma certa justeza no comentário. De fato, nos dias atuais, qualquer pretexto é suficiente para afastar as pessoas das igrejas, mas paradoxalmente, depositam sua confiança num governo que, sistematicamente, vem desmantelando a sociedade.
Jorge exclamou, apontando o último ponto: “A família.” Ela te revela tuas origens e orienta como deves te comportar na sociedade. Em determinado momento, é a família que te confere um propósito na vida, um amadurecimento genuíno, especialmente quando te incumbes do cuidado de alguém, seja um novo rebento ou alguém mais idoso que, em tempos pretéritos, velou por ti.
Pedro, até então silente, pois nenhum homem perspicaz emite muitas palavras na presença de sua amada. Também expôs sua opnião.
Se ponderarmos que, pelo menos no Brasil contemporâneo, a igreja não pratica plenamente tal fraternidade, o governo claramente não promove o desenvolvimento e a unidade necessários, e as famílias, a cada dia, optam por criar cães em vez de filhos, enquanto a televisão e a internet desempenham um papel mais educativo do que os próprios pais, podemos afirmar que nos encontramos carentes de uma coesão social.
Jorge, perspicaz, declarou: “Não, uma sociedade jamais se despoja totalmente de um coesão social; ela apenas busca outras referências que, no final, não a conduzem a lugar algum. Igreja, governo e família são os três alicerces que podem conduzir a uma coesão social robusta, mas acredito que nos dias de hoje a sociedade procura outros fundamentos, tais como:
Beleza
Fama
Dinheiro
Título acadêmico”
Cesareia concordou com dinheiro e título acadêmico, mas discordou de beleza e fama. Então, Carretel propôs um teste: “Cesareia, se você não estivesse envolvida romanticamente com nosso ilustre engenheiro espacial, Pedro, quais seriam as 3 ou 5 características que você buscaria em um relacionamento?”
Sem hesitar, ela respondeu:
Carinhoso
Atencioso
Paciente
Que me respeite
E que não limite minha liberdade
Carretel então lançou um cenário intrigante: “Imagine encontrar um homem com essas qualidades, mas ele é um motoboy, desprovido de beleza, sem fama, com escassos recursos financeiros e sem educação formal. Ainda assim, ele seria um pretendente para você?”
Cesareia não esperava tal exemplificação, confusa entre a verdade e a resposta que soasse melhor, pediu outra cerveja e afirmou que preferiria continuar com o Pedro.
Entre gargalhadas e pitadas no cigarro de palha, Jorge prosseguiu com sua teoria.
“Hoje, se alguém possui uma beleza que se destaca, transforma-se em ator, vende produtos, persuade que um filme ou uma novela é boa e até engaja em campanhas eleitorais; a beleza, nos dias atuais, sempre é ouvida, mesmo que não profira palavra alguma.
O renomado se insere na mesma categoria da beleza, sendo a única diferença que ele não é belo. Entretanto, a fama confere um ‘charme’, que é a tradução para ‘achamos ele interessante só porque ele chegou lá’, e as pessoas mal sabem como ele atingiu tal posto,” complementou Carretel, entre gargalhadas.
O dinheiro é o mais intrigante, pois embora sempre se respeite quem acumulou vastas riquezas, acredito que, outrora, a riqueza derivava de alguma inteligência e esforço. No entanto, nos tempos atuais, um jogador de futebol consegue, por meio de seus esforços, amealhar recursos suficientes para sustentar duas ou até mesmo três gerações de sua linhagem. E então somos compelidos a ouvir essas gerações discorrendo sobre igualdade, oportunidade, amor, foco, objetivo, prosperidade e meritocracia, quando, na realidade, o fator preponderante foi ele nunca se incomodar em quitar um simples boleto.
Pedro completou narrando o culto aos bilionários que se instaura em cada conversa de boteco. “Isso é complicado. O povo torce para um indivíduo que desenvolve foguetes e um veículo elétrico alimentado por energia proveniente de combustíveis fósseis, e altamente subsidiado pelo governo ou para um visionário que criou uma rede social e pronto.”
Eles são abastados, mas não há indícios de que sua opulência tenha origem em alguma narrativa de superação ou, ao menos, em perspicácia comercial. Conhecemos a realidade de que as oportunidades surgiram, e eles as aproveitaram, mas principalmente porque estavam no local certo, na hora certa, com a estrutura adequada. Independente do mérito individual, reverenciar pessoas abastadas é de uma breguice atroz; preferia a época em que as pessoas cultuavam Sidney Magal, verdadeiramente digno de veneração.
Assim como Reginaldo Rossi, o monarca de Pernambuco, outro nobre brasileiro.
Desce mais um pastel recheado de carne, acompanhado de um molho de pimenta altamente suspeito quanto à sua higiene, junto com mais duas cervejas. Creio que, a esta altura, meia caixa de cerveja já teria sido consumada entre os amigos.
Mas e quanto ao título acadêmico, indagou Pedro, como isso se tornou um coeso social equivocado?
Não é equivocado, retrucou Jorge, apenas é incipiente. A ciência deriva da observação, e quase todas as ciências modernas são demasiado jovens para ostentar tamanha certeza.
A ciência é imprescindível, mas seguir cegamente a ciência como se fosse o novo Santo Graal já se revelou um equívoco quando seguimos cegamente o governo, a família ou até mesmo a igreja.
Inúmeras questões a ciência ainda não logra explicar, como o que é o amor, a relevância de uma família na formação de um cidadão, e a importância da crença em Deus. Quando uma pessoa tem apenas a ciência como guia, tende a se encontrar desprovida de fundamentos ao se deparar com situações inéditas ou eventos traumáticos de natureza emocional, financeira ou social.
É como estar enclausurado em uma daquelas salas com paredes, piso e teto brancos, onde não se vislumbra fresta alguma ou qualquer coisa colorida, apenas o branco. A expansão da mente em tal ambiente pode significar seu declínio real.
A ciência precisa observar, questionar e pesquisar, mas hoje, faz-se um curso superior em qualquer lugar e torna-se especialista em banana vermelha; em seguida, aparece na televisão afirmando que banana vermelha é benéfica para a saúde. Todos começam a procurar banana vermelha, alguém que financiou a pesquisa sobre banana vermelha começa a vender futuras produções dela, e após algum tempo, descobre-se que banana vermelha não existe, e jamais existirá, a menos que alguns poucos japoneses apliquem corante na fruta, o que não altera em nada seus benefícios à saúde.
Aliás, poderiam introduzir pastéis de banana aqui no Rei do Pastel, murmurou Carretel.
Cesareia absorveu toda a conversa como uma esponja, interessando-se profundamente pelo assunto. Jorge, percebendo a expressão séria de Cesareia, inquiriu:
O que achou, Cesareia, tenho razão?
Ela respondeu com uma provocação:
“Todo bêbado tem razão até o bar fechar.”
O riso envolveu a mesa do bar, e Carretel, mais uma vez, introduziu um novo e profundo assunto:
O Big Brother Brasil começou, hein…